sobre a morte e suas ramificações

preciso ser sincera comigo. e, claro, com você que está lendo. eu vivi uma experiência de quase morte. tem algumas palavras e algumas frases que continuam rondando e passeando pelo fundo da minha mente. coisas que foram ditas para mim e sobre mim enquanto eu tentava segurar meus pedaços que caíam aos montes. agora, preciso seguir com a honestidade e dizer que eu gostaria que essa experiência tivesse me mudado. muita coisa mudou, é claro. nada do jeito que eu gostaria.

há algum tipo de magia ou química cerebral em algumas pessoas, alguma coisa que eu não sei explicar e não entendo direito, porque tá muito longe do que acontece aqui dentro. essa magia (ou química) causa um efeito que faz as pessoas ficarem gratas, mais atentas aos detalhes da vida, existe até quem vire coach depois que sobrevive a uma situação de quase morte. não me entenda mal, eu não queria ser a pessoa da positividade tóxica, nem dar palestras motivacionais, eu só queria, talvez, tirar algo de bom de uma situação muito merda.

talvez eu precisasse viver uma quase morte com mais adrenalina, pode ser isso que falte. as histórias de superação e motivação são cheias de grandes aventuras. minha morte seria silenciosa, chegaria na calada da noite e ninguém perceberia até o momento que fossem me acordar durante a manhã. não há grandes batalhas na minha história, não há um momento onde tudo mudou, não existe história interessante. existe eu sozinha numa cama, pensando no Milagre dos Andes e convencendo todas as células do meu corpo a colaborarem com o meu objetivo. o pior momento que eu passei foi no primeiro dia de internação onde precisei ficar sem meus Remédios de Doidinha e não conseguia parar de chorar. de resto, eu apenas fiquei o mais quieta possível pelo maior tempo possível, sem incomodar ninguém.

no fim, quando as quarenta e oito horas pós-medicação passaram, um médico veio me dizer que eu era uma guerreira. isso martela na minha cabeça até agora. talvez eu devesse me considerar uma guerreira? talvez seja isso que me falte para transformar a bosta em ouro. mas eu não acredito que seja esse o caminho. porque, depois de tudo e depois de todos esses meses, a verdade é que eu ainda estou apavorada. não consigo parar de pensar que eu tive uma coisa séria, não consigo parar de pensar que uma médica disse que se demorasse um pouco mais, eu teria morrido, não consigo parar de pensar nas coisas que aconteceram tão rápido e tão devagar ao mesmo tempo. eu me sinto frágil, uma prisioneira dentro do meu próprio corpo, dentro das coisas que ficaram em mim da quase morte. seis meses depois e eu beiro o desespero cada vez que minha respiração fica ofegante, cada vez que minha perna insiste em inchar ou doer. ainda sinto o pânico de estar restrita ao leito, com pena de morte caso se levante.

ainda morro de medo de morrer.

e eu, sinceramente, não sei se esse medo deveria me motivar. só sei que não motiva. pelo contrário, me apavora de um jeito que me paralisa. eu quero aproveitar o que a vida tem para me oferecer, quero sentir todos os sabores, todos os cheiros e ver todas as cores, ouvir todos os sons. e de um jeito torto e meio sádico da parte do arquiteto dos meus pensamentos é exatamente essa vontade que me trava. talvez se eu não viver nada, se eu não construir nada, não doa tanto quando morrer, quando destruir.

eu vejo a morte com tanta naturalidade que chega a ser engraçado pensar assim. acho engraçado eu ter passado a maior parte da minha vida querendo morrer e o momento da minha quase morte chegar exatamente quando parei de desejá-la. acho que o roteirista da minha vida tem um humor tão ácido e obscuro quanto o meu.

eu honestamente não faço ideia de como acabar esse texto. não sei se eu trouxe alguma reflexão relevante, se eu disse alguma coisa que faz algum sentido. eu só queria abrir meu coração e deixar você — sim, você que tá lendo — espiar um pouco o que acontece nos corredores do meu cérebro.

Comentários