um: feliz como nunca
Eu costumava me preocupar com os pequenos detalhes: um fio de cabelo fora do lugar, uma peça de roupa um pouquinho amassada ou um tom de errado de batom. Tudo sempre tinha de estar perfeito. Era essa necessidade que vinha de dentro do meu âmago quase como um instinto — de sobrevivência? —, uma angústia latente que só passava quando eu percebia que tudo estava sob controle.
Você era diferente. Você não se preocupava com essas coisas. Pelo menos, era o que você me fazia acreditar. Cabelo bagunçado? Você podia arrumar. Batom borrado? Era só limpar. Roupa errada? Era só trocar. Tudo com um sorriso no rosto que você pintava gentil, um toque metido a zeloso e a condescendência que escorria pelos cantos de todos seus atos.
Você nunca se importou de verdade. Não comigo. Você se preocupava com você e com todas as coisas que giravam ao seu redor. Sim, tudo tinha que girar ao seu redor. Meus planos, meus pensamentos e meus atos. Tudo era para você, por você, com você. Aos poucos, toda minha individualidade foi se diminuindo para você poder caber em mim, todas as suas vontades e os seus caprichos, seus sonhos e suas preferências. Quanto mais eu me enchia de você, mais me esvaziava de mim. Mais orgulhoso você ficava e maior ficava meu sorriso. Só que quando eu me olhava no espelho, eu percebia tudo. Ali comigo mesma, eu via quão pouco havia sobrado, percebia até nas coisas mais simples as suas pinceladas, as coisas que você gostava. Eu havia me tornado apenas uma extensão de você. Como se eu fosse mais uma de suas telas que você estudava, escolhia, desenhava e pintava a seu bel prazer.
Deixei de ser mulher e virei arte.
Não me sentia, não pensava, apenas posava. As pessoas gostavam, sorriam, admiravam. Alguns até queriam tirar fotos. Você ostentava orgulhoso sua obra de arte, deixando sua assinatura queimada com ferro em minha pele que queimava não sabia bem de que, porque. Eu me perdia dentro de mim, apenas observando de dentro de uma redoma de vidro enquanto você tomava as decisões e respondia as perguntas por mim. Às vezes, eu conseguia acenar lá de dentro, gritava um pouco. E você reclamava. Quadro não fala, não opina, quadro não reclama, não sente dor, não sente fome, não responde. Quadro é para ser admirado, fotografado e comprado. Comprado, sim, porque toda aquela aparência te trazia tanto prestígio quanto dinheiro. Dinheiro que você usava para me esvaziar mais, para enfiar mais de você goela abaixo. Eu forçava ânsia e você achava outro buraco para se enfiar, impedindo minha respiração, meu grito de socorro.
Num dia desses, enquanto você surtava por qualquer motivo, preocupava todas as minhas próximas gerações dirigindo bêbado ou fazendo qualquer coisa irresponsável dessa, eu quebrei. Quebrei a fina camada de vidro que me separava de mim. Todas as palavras que eu guardava para mim e apenas para mim, eu joguei em cima de você. Durante todo aquele tempo, eu não tinha reclamado, tinha ouvido, obedecido, tudo girava em torno de você, minha vida havia se tornado você e eu sorria sempre que uma palavra mal educada queria escapar por entre os dentes, porém, o vidro temperado não foi suficiente para calar todas as demandas do meu ser. Ser.
Eu não era arte, eu era gente. Eu precisava falar, chorar, gritar, sentir, dançar, gozar, discordar, desgostar e ser. Ser eu. Todas as vezes que eu calei, que consenti e que posei bateram em mim de uma vez só e eu nunca havia sentido uma dor tão grande, tão intensa em toda minha vida. Ouvi você reclamar quando eu comecei a gritar e chorar, mas não conseguia me importar. Eu estava ali de novo, em carne, osso e dor. Muita dor. Eu existia. Você era só um borrão. Eu vomitei em jatos todas as partes de você que estavam em mim, eu pensei que eu fosse morrer e pensei ter visto, no meio de toda aquela sujeira, meu coração e talvez meus rins. Mas eu me sentia tão bem que, se morresse, não me importaria também.
Em algum momento, eu não estava mais nos seus lugares, eu fugi para bem longe e fiquei sozinha. Passei dois dias inteiros chorando enquanto me cuidava, me lavava, me desintoxicava e tirava pedaço por pedaço que você tinha enfiado debaixo das minhas unhas, das minhas orelhas, da minha pele. Cobri tudo que eu não queria ver, raspei os cabelos, as sobrancelhas, todos os pêlos. Respirei a plenos pulmões enquanto ouvia a música que você odiava e fiz tudo que você odiava fazer. Andei pelada pelos cômodos, fazendo questão de deixar todas as janelas e cortinas abertas, tomei banhos demorados de roupa. Dancei na ponta dos pés e comi direto da panela. Gozei de todos os jeitos que eu queria, não me importando se os vizinhos ouviriam ou viriam pela janela. Eu me libertei.
Depois que tudo se acalmou, eu me afoguei em mim. Eu me pintei de todos os jeitos, me colei em todas as paredes de todos os cômodos, eu me olhei exaustivamente e me consumi como uma obsessão adolescente. Eu me olhei no espelho e me surpreendi: uma tela em branco, toda para mim. Não havia mais sinal de você por ali, por aqui. Eu fiz uma tatuagem que queria fazer há anos. Eu enlouqueci e me apaixonei por mim. Eu bebi de mim mesma e, no fim, pari um novo eu.
Eu costumava me preocupar com os seus pequenos detalhes. Hoje eu me preocupo com os meus mínimos detalhes. Um fio de cabelo fora do lugar? Eu bagunço. Uma roupa amassada? Eu conjunto. Um batom borrado? Eu abraço. E tô feliz pra caralho. Estou feliz como nunca.
🫶🫶🫶🫶
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