dois: tanto faz

  Eu não tenho mais lágrimas para chorar, nem voz para gritar. Eu passei tanto tempo tentando ser ouvida que tudo o que me restou foi o silêncio. Seus ouvidos nunca me ouviram e, com minha garganta seca, eu nem consigo mais tentar. Todas as vezes que seus olhos passaram por mim como se nada houvesse, como se eu fosse apenas um fantasma no meio da multidão, eu senti como uma flecha atravessando meu peito. Nunca rápido o suficiente. As coisas com ela eram devagar. A dor me perfurando lentamente, fazendo o sangue escorrer aos pouquinhos, gota por gota, que quando chegou no fim, eu já estava morta.

Eu poderia passar horas, dias, quiçá anos listando todas as micro agressões que causaram a minha morte. Eu poderia contar do enlace de dedos que ela recusou, do sorriso que ela não respondeu, da piada que ela não riu, do cafuné que ela desviou. Só que nada disso seria suficiente, as palavras não conseguem descrever, ou melhor, descrever os atos não imprimirá em palavras tudo que senti. Só eu sei os soluços que engoli ao lado dela na cama todas as noites. A solidão que consumiu todos os meus poros e pesadelos enquanto ainda dividíamos o guarda-roupas.

Meus diários foram se esvaziando. Eu não conseguia pensar, não conseguia comer, não conseguia existir, porque tudo que eu fazia era sentir. Sentir falta dela, da sua voz, do seu cheiro, dela por inteiro. Não porque ela estivesse longe, ela estava bem ali a dois passos da minha cadeira de escritório. A distância, porém, parecia um abismo de silêncio e gelo. Minha pele se arrepiava de frio toda vez que seus olhos passavam pela sala e não me viam, não me notavam. Minha voz se calava cada vez que eu chamava e não era ouvida. Um centímetro por vez a flecha se afundando em meu coração.

Ao final do dia, minhas costas doíam e meu pulmão se enchia de ar assim que ela saía porta afora, meu corpo inteiro repelia fisicamente sua presença — ou a falta dela — e meus pés caminhavam na pontinha dos pés para o mais longe possível dos cabelos cheirosos que eu queria desesperadamente cheirar. Eu ia parar na cozinha, na sacada no meio da madrugada gritando e chorando coisas que nem eu conseguia entender. Nem isso a fazia acordar. Nem isso a fazia me notar.

Quando eu já não tinha mais forças ou voz, cheguei ao ponto alto do meu desespero: peguei ela pelos ombros e a sacudi, procurando uma resposta, uma reação. Queria que alguma coisa acontecesse, qualquer coisa. Um murro seria reconfortante. Gritei e implorei por uma reação, chorei seca porque eu não tinha mais lágrimas. Ela sequer se assustou, numa apatia desesperadora que me fazia querer arrancar os cabelos, os olhos vazios passando direto por mim como se eu fosse transparente. Percebi que, talvez, eu fosse louca. Ou estivesse ficando.

Por fim, minha inevitável morte. Não veio a galope como eu desejava, eu pude vê-la se aproximando bem aos pouquinhos. A flecha atravessada quase por completo, derramando sangue a conta gotas, eu contando cada uma delas enquanto minhas veias se esvaziavam por completo. E ela estava ali: assistiu enquanto eu morria, tentava gritar na aridez da minha voz, tentava acenar e pedir ajuda com as últimas forças e um último instinto de sobrevivência. Ela assistiu e não viu a morte lenta que me acometeu, como se eu já não estivesse ali há tempos, como se eu estivesse morta bem antes disso.

Seus olhos vazios refletiam os meus. Como se tanto fizesse e eu, quase no fim, eu percebi. Eu entendi que tanto faz.