O bem-te-vi na minha janela
Ok, vou começar já me justificando. Confesso que roubei, sim, algumas lembranças e alguns momentos, uns recortes que claramente foram afetados pela saudade, mas foi só porque eu não tenho lembranças minhas suficientes para acalmar meu peito ansioso por antiguidades, por histórias mais antigas que eu. Não possuo o conhecimento que gostaria sobre você. E é muito estranho pensar nisso agora, depois que você se foi, que morávamos na mesma casa, convivemos desde que eu me entendi por gente e, ainda assim, estranhamente eu não sabia muita coisa sobre você. Sabia de todas as histórias que você adorava contar e recontar, sobre sua infância, sua juventude, suas inquietações, até alguns de seus medos, coisas que tínhamos tanto em comum.
Porém, eu estava apenas começando minha vida, entendendo como funcionar nesse mundo louco, então eu não fiz muitas das perguntas que eu gostaria de fazer, eu não soube dizer com certeza se você não votaria no Inominável, eu não vou saber o que você pensava sobre pássaros ou como foi sua vida nos anos 80. Aos 19, eu percebi que tinha essas muitas perguntas que nunca teriam resposta. Toda uma história e uma vida de aventuras que eu tinha acabado de começar a almejar, interrompido num silêncio ensurdecedor. O silêncio da notícia chegando sem aviso, sem preparo, o silêncio preso na minha garganta enquanto eu aceitava o que tinha ocorrido.
Confesso, também, que eu nunca soube viver meu luto. Até hoje eu me isolo para chorar baixinho, ouvir as músicas que você gostava, pensar em como você lidaria com a pandemia e como as coisas seriam diferentes, gosto de viver isso sozinha, gosto de ter o meu momento e fingir que estou conversando com você em pensamento. Geralmente, é um monólogo. Eu falo muito. Não recebo resposta. Às vezes, eu me pego agachada ao lado de uma caixa procurando algum sinal, procurando algum pedacinho perdido e, quando encontro, milhões de partes de mim se animam por uma antiga descoberta, é tão bobo quanto parece. Esses dias encontrei um contrato com uma editora de uma antologia que você participou com aquela poesia bonita que todo mundo gosta. Obviamente, encarei aquilo como um sinal, acendendo mil chamas de esperança e motivação, lembrando de uma vez que você disse que eu escrevia bem. Outro dia, uns bem-te-vis entraram aqui em casa, claro que já era outro sinal para mim, afinal, está grudado como chiclete em meu cérebro todas as vezes que você imitava o canto do bem-te-vi, era o que mais imitava.
Sabe, eu prometi a mim mesma, de pé junto e de dedinho, que iria lembrar de todas as suas partes. Prometi que não deixaria de reclamar das coisas que você fazia, de tudo que me irritava, que não deixaria sua imagem imaculada na minha memória, odiava que fizessem isso com gente morta à minha volta. Só que o tempo é cruel — assim como a saudade — e eu acabei me esquecendo de fazer isso, afinal, é tão mais doce lembrar de coisas boas, lembrar de coisas ruins é irritante e até meio desnecessário. Que sentido teria eu reclamar de uma coisa que não pode nem mais ser melhorada? Assim, aos poucos, todas as memórias azedas e até agridoces que eu cultivei no primeiro ano, foram sumindo devagarinho até desaparecem por completo do meu mural de memórias. É aqui que entram os recortes, as lembranças roubadas de todas as pessoas que gostaram tanto de você, eu as uso como se fossem minhas, montando um quebra-cabeças de coisas que quero guardar. Pouco a pouco transformando você nesse ser imaculado que tanto desprezei e tanto lutei para que não colasse.
Talvez a morte seja assim mesmo, sirva de redenção para todos, ninguém vai lembrar de erro nenhum depois que você morrer, porque ninguém gosta de guardar coisa ruim. Todas as memórias vão sendo polidas e tomando um lugar num altarzinho dentro de cada pessoa, lá não há espaço para erros, para intrigas ou qualquer coisa mal resolvida. Lá é lugar de risada, de conversa boa, de carinho, de cheiro de natureza num dia ensolarado. Sinceramente, acho bonito de ver as marcas que você deixou nas pessoas, no mundo. Todo mundo lembra um pouquinho com carinho de você, de todas as coisas que você fez, todo mundo tem alguma coisa boa para contar. As pessoas se deram conta de que gostavam de você depois que você se foi.
Eu não. Eu já sabia há algum tempo, eu vinha percebendo a medida que fui virando gente que nós tínhamos coisas em comum. Eu estava aprendendo a construir essa relação, queria investir nisso, pedir conselhos, conversar. E uma das últimas coisas que você me disse é que nós não temos todo o tempo do mundo, sem saber que você tinha bem menos tempo que o resto de nós aqui na terra. Acho que ficou um pouco de lição. Não sei.
Eu queria agradecer. Você me deu tantas coisas boas, você me deu a passagem de vinda para esse mundo, você cuidou de mim enquanto esteve aqui. Você me conheceu tão bem no momento em que soube que eu estava vindo. Obrigada por tanto, por me aceitar, me valorizar, me incentivar, deixar meus padrões altos o suficiente para que eu pudesse aumentá-los sozinha depois. Obrigada por libertar meu espírito, por ser tão presente que às vezes era chato.
Agora, eu tenho uma poesia só minha para tatuar e, segundo o que o bem-te-vi na minha janela me disse, muito trabalho a fazer.
lindo 🥺
ResponderExcluirobrigada!
ExcluirParabens, texto muito bem escrito.
ResponderExcluirobrigada!
ExcluirObrigado por compartilhar esse lindo texto, Flora.
ResponderExcluirSeu pai marcou a vida de muita gente.
Ele foi um grande e bom amigo, assim como sua mãe.
Sei que hoje ele está feliz em outro plano, com aquele sorriso largo que era próprio dele.
Como diz a música de Milton Nascimento:
"Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito. "
E ele sempre estará no meu coração.
Muito obrigada por compartilhar isso comigo, fico muito feliz de saber que ele deixou rastros por aí nesse plano!
ExcluirQue lindo Florinha, seu pai, meu tio foi e é sempre será eterno nas nossas lembranças, sinto tanta falta, sinto falta de escutar ele me chamando de “falvinha”. Ele foi incrível e você também é, te amo.
ResponderExcluirObrigada. É muita saudade mesmo, a gente sente falta das menores coisas né? Muito obrigada, também te amo viu? ♥
ExcluirA arte de escrever é uma dádiva. Me fez sentir novamente a saudade de quem se foi há quatro anos. Obrigada
ResponderExcluirMuito obrigada! Vai chegando Julho e a saudade vai aumentando...
Excluirmto obrigada!! ♥
ResponderExcluirNossa Flora, que texto lindo......emocionante
ResponderExcluirobrigada! ♥
ExcluirQuerida Flora, quando o meu pai se foi, foi muito difícil para mim. Mas um amigo me deu um conselho, que eu tivesse calma que com o tempo toda a tristeza e toda a dor passariam e só a saudade e as boas lembranças restariam. E foi isso que aconteceu comigo. E em relação ao seu seu pai e meu amigo, foi a mesma coisa. Só tenho saudades e boas lembranças da pessoa querida que ele era. Um abraço carinhoso.
ResponderExcluirÉ muito legal saber disso, reconfortante até. Obrigada por compartilhar comigo, sigamos fortes ♥
ExcluirFlora, estou impactada. Que lindo isso ! Seu pai, o Cláudio, amigo querido, era especial em sua particularidade. Suas palavras me trouxeram lembranças doces. Emocionante .
ResponderExcluirMuito obrigada! Fico feliz de ter despertado essas lembranças em você. ♥
ExcluirObrigada Flora pôr compartilhar comigo esse lindo texto.
ResponderExcluirObrigada por ter lido e por comentar aqui ♥
ExcluirFlora muito lindo! Real vc tem sim de quem se orgulhar.pois tive a honra da amizade de seu pai um amigo entanto.Tenho ate um exemplo dele que ele me falou sempre lembro e compartiho com outras pessoas . É uma lição de vida.
ResponderExcluirMuito obrigada! Eu fico muito feliz de saber que meu pai foi um grande amigo pra você, obrigada por compartilhar isso comigo ♥
ExcluirFlora, seu pai foi e sempre será especial, poucas vezes na vida senti o que eu senti quando soube que ele havia, momentaneamente nos deixado... Um amigo muito querido e sim... Em nosso desejo, nos deixou muito cedo...lindo o que você escreveu!!! Isso não me espanta, sendo filha de uma dupla especial ..
ResponderExcluirObrigada!! Gosto de pensar naquela música do Legião pra olhar para a passagem dele com mais leveza...
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